Tuesday, June 9, 2009

O sofá vermelho


Todos os dias pela manhã repetia um ritual que a levava a recuar vários anos no tempo. Antes de tudo, chorava. Chorava até ficar com os olhos completamente inchados e vermelhos, como pequenos vulcões numa erupção de lágrimas. O lençol ficava ensopado e cheio de ranho. Quando finalmente conseguia reter as lágrimas no seu depósito temporário, levantava-se e ia sentar-se no sofá onde ele lia o jornal enquanto comia uma maçã verde, como os seus olhos. Ficava ali sentada durante alguns minutos, tentando ver o mundo pela perspectiva dele...tentando sentir ainda o seu calor a emanar do velho sofá branco...bem, já um pouco bege. Não,não conseguia sentir o calor dele! O calor que sentia emanava de si, do seu corpo cheio de vida e sonhos perdidos.
Não tinha força para a sua corrida matinal. Não tinha carinho para dar ao cão. Não tinha energia para sorrir. Não tinha nada. Estava para ali a lamentar-se por algo que não podia emendar ou reverter, mas continuava com os pés presos no chão das lamúrias e com o pensamento no intangível.
Até que o cão, aquele ser que amava como a um membro da família, mas que relegara para segundo plano há já muito tempo, parecendo ter-se revoltado finalmente, num ataque de uma fúria estranha, mordeu-a ferozmente numa perna. Ela, no grito de dor que exalou, libertou todas as angústias e tristezas, tendo por fim sentido vontade de chorar por uma dor física, que não conseguia controlar para já, mas que um dia iria passar também. O cão libertara-a da sua dormência mental e física, dando-lhe uma prova de carinho de forma grosseira e momentaneamente dolorosa, mas sincera e eficaz.
No dia seguinte já não chorou porque não tinha tempo...tinha de ir fazer o curativo na perna. Deu uma longa caminhada pela praia...com o cão. E comprou um sofá novo...vermelho.

2 comments:

Rafael Romano said...

Muito bom esse texto... vc merece ser reconhecido, divulgue mais esse blog pois o mundo precisa mais disso!!! vc já está na minha página de favoritos.
bjos
Rafael
Moderador do blog vodkavip.blogspot.com

Kallipso said...

Olá Rafael.
Parece impossível mas só hoje vi o seu comentário ao meu texto. Agradeço-lhe e peço desculpa pela minha falta de atenção. Acho que tenho de rever as definições do blog. :)
E pelos vistos, já que tenho um fã, tenho de ser mais assídua na escrita! Um abraço