Thursday, October 20, 2011

Bocados

Não sei o que aconteceu. Não sei quais foram as palavras que te fizeram acordar daquela realidade que não era mais nossa. Entendi apenas que tinha que soltar a âncora invisível que nos mantinha presos a um pedaço de terra verdejante, mas desprovido de quaisquer elementos de sobrevivência.

Então partiste, mas não entendi onde ancoraste. Sucumbi à ilusão quando acreditei que esta viagem era diferente, que não íamos mudar o que éramos. Que ias ser sempre tu e eu, no silêncio, no escuro. Que ia contigo e nos íamos deixar levar pela ondulação até encalharmos noutro bocado de terra deserto, onde pudéssemos cultivar e colher ao nosso tempo, à nossa maneira.

Doeu. Doeu quando anos depois passei pelo teu porto e as vagas impediram de aproximar-me. Na impossibilidade de atracar fiquei longe, à deriva. Vi os teus campos cultivados, as searas douradas, os jardins luxuriosos…Fiquei com inveja, confesso. Conseguiste crescer e soubeste singrar sem mim. Não foi tão difícil como um dia disseste que seria.

Dou por mim a ter medo que fique sempre um bocadinho de mim à espera de um bocadinho de ti. Acho que foi por isso que continuei à deriva sem saber o que fazer para me aproximar do teu bocado de terra, de ti. E estava a ficar fraca e sem qualquer orientação. Sabia apenas onde era o Este porque era onde estavas. Não sabia quanto mais ia aguentar o grito dentro de mim, quanto mais tempo ia aguentar ficar ali, à espera...

Anos depois um dos teus filhos brincava na praia e trouxe-te uma garrafa que encontrara .
- Pai, tem qualquer coisa lá dentro! Parece uma mensagem, será de um pirata?
Enquanto sorrias, as tuas mãos agora rugosas e com mais calos do que quando seguravas as minhas, abriam a garrafa e a criança pulava de alegria. Desenrolaste o papel envelhecido pelo tempo e pelo sol, e encontraste uma letra que nem sei se reconheceste. Após alguns segundos, leste a mensagem em silêncio:



- Não é de um pirata, mas sim de um corsário. Há uma diferença, sabias? – Explicaste-lhe momentos depois, enquanto se afastavam da praia e punhas o papel no bolso das calças, até encontrares o primeiro caixote do lixo, para onde o atiraste.

Não sei se soubeste que era eu. Mesmo daqui de cima às vezes não se consegue perceber o coração das pessoas.

Wednesday, October 12, 2011

Pergunta-me

Pergunta-me,
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda o minuto de cinza,
se despertas a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue.
 
Pergunta-me,
se o vento não traz nada,
se o vento tudo arrasta,
se na quietude do lago,
repousaram a fúria e o tropel de mil cavalos.
 
Pergunta-me,
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enevoadas,
e se eras tu quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo a folha rasgada
na minha mão descrente.
 
Qualquer coisa,
pergunta-me qualquer coisa.
Uma tolice,
um mistério indecifrável
simplesmente para que eu saiba
que queres ainda saber,
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer.

Mia Couto

Saturday, October 1, 2011

Economia e a Vida, uma analogia quase impossível


Acredito que as coisas que vivemos acontecem por ciclos. Se serão 10 anos como se diz na Economia, isso já não sei... O que sei é que há ciclos mais curtos mas muito mais intensos que os longos.
Talvez as coisas se esgotem muito mais depressa nos ciclos curtos. Quando se dá tudo, corremos o risco de ficar em dívida. E parece ser preferível guardar para nós um pouco da riqueza construída ao longo desse tempo, para que nos tempos de crise possa servir-nos de amparo, "quando estivermos tristes...ou no duche" (The Big Bang Theory). :)

Mas, em todos os casos, os ciclos eventualmente fecham-se, e é outra Era a partir daí.

A Era de esquecer. É imperioso mudar determinadas acções e vontades... e começar de novo. A vida pode ser mais colorida com ilusões, fantasias e gargalhadas que escondem um propósito pouco claro. Mas, com cores menos vivas também se consegue cultivar um jardim. Um jardim em que as flores que se colhe são aparentemente menos belas, mas que cheiram muito melhor e que se adequam na perfeição ao ambiente que as recebe.

Ciclos, Economia, Vida...é uma analogia quase impossível para alguém que nunca foi muito dado às Matemáticas e afins. Mas, há momentos na vida que até as coisas mais improváveis acabam por acontecer. Acontecem no momento mais inesperado, da forma mais inesperada. Talvez por isso acabem por marcar-nos mais, ensinam-nos coisas que pensávamos nunca vir a entender, fazem-nos passar em testes nos quais por norma íamos chumbar "com distinção" e mais do que tudo, ensinam-nos que a Vida está cheia de partidas e que temos sempre de estar preparados.

Uma das coisas inesperadas neste ciclo foi descobrir que, na maior parte das vezes se paga por aquilo que se diz...